O defensor da floresta
O advogado Jayme Vita Roso criou e mantém, com recursos próprios, a única floresta urbana de São Paulo
por Eduardo Araia
Em 1963, o governo do presidente João Goulart provocava uma enorme incerteza política e a inflação andava nas alturas. Em tempos assim, o manual do bom investidor recomenda aplicações seguras, como imóveis - e foi essa a estratégia seguida pelo advogado Jayme Vita Roso. Aos 30 anos de idade, ele adquiriu um terreno de pouco mais de 855 mil metros quadrados (85,56 hectares) entre o bairro de Parelheiros, no sul da capital paulista, e o município de São Bernardo do Campo, a 42 quilômetros da praça da Sé e a 20 quilômetros de Santos. A idéia original era dividir a área (devastada pela ação de madeireiras) em lotes e vendê-los. Mas os caminhos profissionais de Vita Roso mudaram, levaram-no para longe do Brasil - e a história daquelas terras nunca mais seria a mesma.
O então advogado de um grande banco ganhou experiência em direito econômico e foi chamado no ano seguinte para fazer um serviço na Itália. Outros trabalhos se sucederam e ele foi ficando. Por volta de 1969, retornou ao Brasil a convite de uma empresa que queria explorar gás no Vale do Paraíba, mas o negócio não deu certo e ele voltou a viajar - dessa vez rumo à África, contratado por construtoras francesas e brasileiras. Ficou cinco anos por lá, em países como Gabão, Mauritânia, Costa do Marfim, os dois Congos (o ex-Zaire e o Congo-Brazzaville), Angola e Moçambique. Vita Roso só retornaria em definitivo ao Brasil na segunda metade da década de 1970, já com uma perspectiva bem diferente a respeito de seu sítio em Parelheiros.
“Depois de ver toda aquela desolação na África, comecei a pensar sobre o que fazer com a minha área”, conta. Naquele momento, a história familiar também pesou muito. “Meus antepassados emigraram do sul da Itália para o Brasil no século 19 por causa de problemas ambientais”, afirma. “Nos séculos 16 e 17, os árabes e espanhóis invadiram aquela região e destruíram a cobertura vegetal para fazer construções e barcos. No século 19, essa devastação ambiental facilitou o surgimento de diversas moléstias endêmicas, como a malária.”
Transformação
Vita Roso decidiu então recuperar o sítio, denominado Curucutu - homenagem em tupi-guarani ao som feito pela coruja, abundante ali -, e em 1979 deu início a esse projeto. Trocou uma propriedade em Mato Grosso pela construção de duas casas, a sede e outra menor, até hoje a serviço do empreendimento. E pôs-se a erguer uma infra-estrutura capaz de concretizar seu sonho.
Naquela época, temas como ecologia, preservação ou planos de manejo eram praticamente inacessíveis a leigos, e o advogado fez tudo conforme sua lógica e sua inspiração ditavam. Comprou mudas em Limeira, no interior de São Paulo, ganhou outras em suas viagens e começou o plantio. “Fui plantando aleatoriamente, como me veio na cabeça”, conta. Com isso, espécies exóticas ganharam espaço no reino da mata Atlântica, algo inaceitável pelos conceitos de reflorestamento adotados hoje. Outros detalhes da infra-estrutura, como os cinco lagos e a criação de um cinturão ao redor das terras, para prevenir incêndios, tampouco são aprovados pela atual legislação ambiental. Mas quem pode recriminar esses equívocos no trabalho de um pioneiro bem-intencionado?
A mata imaginada por Vita Roso começou com paineiras e cedrosbrancos plantados com suas próprias mãos. Até os amigos acharam que tudo aquilo era uma loucura e que ele não veria suas crias crescerem. “Algumas das árvores daquela época já atingiram 25 metros de altura, ou até mais”, sorri Vita Roso, satisfeito em contrariar a profecia agourenta.
Depois do início aleatório, o advogado passou a dar preferência às espécies nativas da região no reflorestamento. Pelas contas atualizadas, já foram plantadas cerca de 800 mil árvores, das quais 500 mil vingaram e formam grandes bosques. Entre elas estão o guapuruvu (cuja madeira era aproveitada pelos índios para fazer embarcações), a bracatinga, pinheiros chineses e japoneses, o angico, o pau-brasil, o jacarandá, o cedro, a peroba e a araucária. Hoje, Vita Roso calcula que as matas do Curucutu respondam por cerca de 0,5% do oxigênio consumido em São Paulo.
Eficiência
Com a vegetação retomando seu lugar, os animais voltaram a povoar aquelas terras. Hoje em dia, elas estão repletas de pequenos répteis, mamíferos como veados, pacas, tatus e cotias, insetos como borboletas e pássaros como papagaios e, claro, corujas. Vita Roso gosta de tudo em ordem, e hoje em dia seu sítio é um modelo de eficiência. A administração conta com sete casas - a sede, com 400 metros quadrados, e seis menores. Um viveiro produz mudas para o reflorestamento. Toda a área é cortada por estradas impecavelmente conservadas e sinalizadas. Os oito funcionários, todos registrados, cuidam também de pequenas hortas e de um apiário, cuja produção é destinada a seu consumo.
Um plano de manejo estabelecido recentemente deve modificar o atual perfil ambiental das terras. O lote composto por espécies exóticas deverá ser substituído por exemplares nativos da região. O segundo grupo, de áreas cuja flora nativa já vem sendo manejada, passará por procedimentos visando a aprimorá-la.
O trabalho do advogado no sítio Curucutu já lhe rendeu farto reconhecimento. Entre os prêmios que ganhou estão o PNBE de Cidadania, em 2004, os Tops de Ecologia e Social, da ADVB, respectivamente em 1996 e 2001, e o Revista Natureza de Ecologia, em 1997. O advogado recebeu ainda a Medalha Anchieta e o Diploma de Gratidão da Cidade de São Paulo, concedidos pela Câmara Municipal paulistana em 2004, e já foi objeto de reportagens em diversos órgãos de imprensa. Nada disso, porém, foi traduzido em apoio, e o fato é que ao longo de todos esses anos Vita Roso tem usado mensalmente metade do que ganha como especialista em leis antitruste e consultor jurídico de grandes empresas para arcar com os custos da reserva. “A única doação que recebemos foi de um amigo, que recentemente contribuiu com 20 mil reais”, afirma Vita Roso.
O tempo ensinou o advogado a ser cético em relação ao convívio com o poder público, cujas promessas de colaboração nunca se concretizaram. “Não conheço ninguém que ajude nessa área sem ter algum tipo de interesse”, comenta. “Ou quer manter cargo ou faz consultoria por indicação de alguém que depois pode facilitar a aprovação do projeto.” Por falta de opções, ele mesmo bancou a construção da estrada que liga seu terreno à Rodovia dos Imigrantes. Também saiu de seu bolso a instalação da energia elétrica e da fiação telefônica. Uma boa notícia recentemente foi a seleção da reserva pela Fundação O Boticário, que mantém o Projeto Oásis. Durante cinco anos, a propriedade será apoiada financeiramente.
Mesmo acreditando pouco no apoio externo, Vita Roso nunca deixou de preparar legalmente a Curucutu para essa possibilidade. No fim de 1995, uma portaria do Ibama tornou 10,89 hectares da área uma Reserva Particular do Patrimônio Natural - até hoje, a única do gênero localizada numa capital brasileira. No ano seguinte, foi constituída a Curucutu Parques Ambientais, uma ONG transformada em Organização da Sociedade Civil de Interesse Público em 2003. Com essa configuração, a entidade passa a ser administrada pelo Ministério da Justiça e fica capacitada a fazer parcerias com órgãos ou entidades públicos e privados, além de empresas e instituições nacionais e estrangeiras.
Dedicação
No início, Vita Roso chegava a passar pelo menos 14 horas diárias mexendo nas terras do Curucutu, plantando e replantando - sempre com o apoio da mulher e das três filhas. Agora, porém, perto de completar 74 anos, o advogado começa a sentir sua aparentemente inesgotável energia declinar. “Já não tenho mais idade para tocar aquilo”, diz em tom de lamento. É hora de cuidar mais da família, explica. Por isso, está à procura de uma empresa ou instituição que possa assumir a responsabilidade de levar o Curucutu adiante - com muito espírito humano, sempre buscando respeitar o próximo e administrando o empreendimento sem esperar nada em troca. “Precisamos e devemos compartir isso com os outros, não egoisticamente”, adverte. De qualquer modo, ele avalia que toda sua aventura ambiental valeu muito a pena. “O que fiz é uma obra que me dá muito orgulho e um grande prazer, espiritual e intelectual. Nada vai pagar a satisfação que tive ao realizar tudo aquilo.”
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