sexta-feira, 4 de junho de 2010

Antônio José, um jardineiro


 O que aconteceria com o mundo se todos os homens resolvessem cuidar das plantas do prédio da frente?

por Cristina Ramalho 


Tom Zé é um dos músicos brasileiros mais bacanas. Tem 24 discos, é sucesso internacional e um dos "melhores artistas do mundo na década de 90", segundo a revista Rolling Stone. Há coisa de 20 anos, quando, por assim dizer, apareceu uma casca de banana, ele se empregou numa fazenda no Embu, nas cercanias da capital paulista. Foram três anos nessa, sacolejando no caminhão, misturado aos peões. Depois, enfrentou outra temporada de enxada numa chácara macrobiótica, até descobrir que era possível praticar sua devoção à terra no próprio quintal. Assim, desde o começo dos anos 90, Tom Zé cuida do jardim de um prédio de apartamentos, no bairro de Perdizes, São Paulo - e nem mora mais ali, mudou-se para o edifício da frente. Ganha um salário mínimo, planta flores e frutas e exercita sua arte zen no dia-a-dia, aprendendo a esgrimar pragas das folhas, formigas enxeridas e condôminos de mau humor. 23 horas. As terças-feiras são livres.

Quando deu o estalo de cultivar a terra? 
Foi nos anos 80. Queria uma válvula de escape para os meus nervos. Desde pequeno, em Irará, na Bahia, aprendi que a terra alimenta a gente. Ali a principal cultura era o tabaco, o fumo. E quando se tentava plantar outra coisa, não vendia. Plantaram abacaxi lá, deu um abacaxi doce, maravilhoso. Fiz uma música pra isso, em 1972, "O Abacaxi de Irará". Tentei saber como se negociava, fui ao Ceasa (hoje Ceagesp), mas não deu. De modo que a terra sempre esteve presente na minha vida.

Mas você foi mexer na terra bem mais velho...
Eu estava com dificuldades e resolvi consultar o planeta Terra. Fazia terapia também, faço terapia, uma coisa não substitui a outra. Aí fui trabalhar numa fazenda mantida pela prefeitura do Embu.

Como era isso? 
Ia duas vezes por semana. Chegava lá bem cedo e saía com os peões, de madrugada, fazendo qualquer coisa que eles faziam, o que estava programado. Um dia era para cuidar de cenouras, outro para limpar a terra, outro para carpir. A gente plantava alface, agrião, tudo sem agrotóxicos. E a prefeitura doava os alimentos para entidades beneficentes. A cenoura de lá tinha um sabor incrível. Aquilo, natural, é um suco. No dia em que eu comi um pedaço, me veio a minha infância. Sabe aquela coisa de Proust, na página 36, de provar a madeleine e voltar no tempo? Eu senti isso com aquela cenoura.

O pessoal sabia quem você era?
Não. Mas um dia levei o violão, cantei pra eles, gostaram. Qualquer peão entende a minha música, que o pessoal acha tão sofisticada. Eles se divertiram bastante. Mas, logo depois, mudou o prefeito e o prefeito novo acabou com a fazenda. Aí, eu já me alimentava com comida macrobiótica e o presidente da associação macrobiótica tinha uma chácara e deixou a plantação por minha conta. Eu fazia tudo absolutamente sozinho, plantava verduras e temperos: manjericão, alecrim e pimentas. Aí, depois de um tempo, também tive de sair de lá.

E o jardim? 
Foi seu Rômulo, um italiano que morava ali no prédio (aponta para onde cuida do jardim, bem em frente) que me ensinou. Ele entendia, fazia uns enxertos de rosa e de plantas em geral. Consultei-o para saber que plantas podiam dar mais flores, como fazer enxertos, a adubação certa.

E o que você planta lá? 
Nosso jardim é muito caipira. O jardineiro também. Não uso chapéu, luvas... Só ponho para tirar retrato. Bom, tentamos manter a tradição de ter flores: buganvílias, primaveras, rosas, azaléias, marias-sem-vergonha, beijinhos americanos, manacás-da-serra, lírios cor-de-rosa - essa dá em janeiro, lindo, e em março já acabou. Compro no Ceasa ou planto mudas que o pessoal traz.

Você tem suas preferidas? 
Ah, acho que as roseiras são especiais. Eu dou nome para elas por causa da personalidade. Tem a "seu Rômulo", tem a "Paulo Freire", que é uma roseira boa, generosa, uma prostituta. Tem a roseira "Bailarina", dada por Sofia e Eliana, que são as bailarinas do prédio, filhas do professor de grego, seu Cavalcanti. Elas me deram uma rosinha cor-de-rosa delicada e resistente como o diabo. E tem as vermelhas, as "Trovadores Urbanos", porque a Maída, dos Trovadores, fez uma serenata para mim e, na hora em que ela cantou na frente do prédio, as rosas levantaram, ficaram lindas.

O que você aprendeu de mais bacana, mais importante?
A época de podar é uma novela. Já aprendi vários tipos de poda, a lua certa, essas coisas. Aprendi a sublimar o barulho da rua. E também aprendi a lidar com as pessoas do condomínio. Porque tem todo tipo de gente, não é? Há pessoas que têm ciúme, algumas reclamam que eu estou gastando muita água, outras trazem plantas e não entendem quando digo que não dá para plantar ali porque uma pode fazer sombra para a outra... Mas eu converso, explico, vou me virando.

Por esse trabalho você ganha um salário mínimo mensal, é isso? 
Olha, tem épocas que o síndico compreende o charme do pagamento e me paga. Tem épocas que ele não compreende, de modo que não sei bem quando recebi pela última vez. As pessoas aceitam me pagar, sim. Mas eu mesmo compro quase tudo, vou ao Ceasa, pago do meu bolso. Tem gente que traz plantas novas também. Quando vejo que não vai dar certo, eu negocio. Por exemplo, uma das moradoras, a Cacilda, trouxe um pau-brasil, mas aquilo cresce demais, vai tomando espaço. Aí eu negociei, comprei uma buganvília cor-de-rosa, linda. E assim vai...

Cuidar do jardim ajuda nas idéias? Ajuda a fazer música? 
O jardim está presente em tudo o que eu faço. Me ajuda, assim como a psicanálise ajuda também. A terra é alimentadora e minha cabeça fica com saúde para fazer a navegação da música, do terreno, dos materiais que ainda não entraram no universo da música. O jardim fornece combustível, alimenta a divagação cósmica. 


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