sexta-feira, 4 de junho de 2010

Jardim da infância


Mais que um amontoado estético de plantas, um canteiro deve ter significado para seu dono

por Liane Alves

Na minha infância tive a sorte de morar numa casa alugada cuja proprietária era uma portuguesa que morria de saudades das rosas da santa terrinha. Seu maior desejo era transformar o quintal daquela casa numa embaixada simbólica da cidade portuguesa de Sintra, com suas quintas de bom vinho e casarões floridos. Para garantir a realização do projeto, fez uma farta provisão de mudas e sementes que, não sei como, trouxe de Portugal. E, por causa desse sonho, o jardim da rua Grajaú, em São Paulo, virou uma sensação de parar gente na rua. Perfumadas rosas cor de champanhe em cachos (nunca mais vi...) se debruçavam sobre o caramanchão da entrada e roseiras com flores gigantes abriam-se nos canteiros (não raro passavam por ali freirinhas pedindo rosas para enfeitar a capela). Amores-perfeitos plantados por minha mãe bordavam todos os canteiros e uma das imagens mais queridas que tenho do meu pai é lembrá-lo de jeans e camiseta regando plantas no fim da tarde. Já o jardim atrás da casa era mais à portuguesa mesmo - ou seja, tudo misturado com todas as coisas, de tinhorões a lírios amarelos, passando por samambaias em xaxins e avencas em caixinhas de plástico. Ao vê-lo, um paisagista teria uma síncope.
Não conheci dona Rosa (claro, era esse seu nome), acho que ela morreu quando eu era pequena, mas, além de ter realizado e curtido seu sonho, proporcionou esse mesmo encanto, esse presente, para outras pessoas também. E esta pode ser uma generosa intenção ao se fazer um jardim - plantar pensando em quem vier no futuro
Existem outras intenções também. Vou dar mais dois exemplos, só para você ver como um jardim passa a ser muito mais significativo quando é plantado de forma intencional. Um deles é citado no livro Pesadelo Refrigerado, do escritor americano Arthur Miller. Ao entrar no jardim de uma mansão no sul dos Estados Unidos, Miller teve um choque. Era noite de lua cheia e a água dos chafarizes brilhava em mil formas diferentes, ao lado de fontes e estátuas de ninfas de mármore. Alvas também eram rosas, lírios e as muitas espécies de jasmim, assim como os nenúfares que boiavam sobre os espelhos d'água. Para seu espanto, estavadiante de um jardim noturno, desenhado intencionalmente para ser visto à luz da lua e evidenciar os contrastes entre o preto e o branco. Seus autores o haviam concebido como cenário perfeito para despertar corações enamorados - e demonstrar o poderio dos fazendeiros sulistas.
Outros jardins foram criados para testemunhar a passagem do tempo e a mudança das estações. Claude Monet, o mestre dos pintores impressionistas franceses, plantou flores, arbustos e árvores no terreno de sua casa de modo que, a cada estação, se formasse uma determinada palheta de cores, com alternância intencional de tons. Até hoje, os olhos dos turistas se deliciam em seu Jardim de Giverny, na França, onde guias turísticos descrevem como os narcisos, tulipas e jacintos de abril são substituídos pelas glicínias, azáleas e peônias de maio ou os nenúfares, dálias e girassóis de julho. Monet pintava com plantas e flores tanto quanto com tubos de tinta e transformou seu jardim num quadro vivo.
"Jardins deveriam ser reflexos da alma e não apenas um arranjo estético impessoal" diz Peter Webb, ambientalista e paisagista australiano residente no Brasil interessado em criar jardins que despertem sentimentos e em trabalhar a relação das pessoas com a natureza. "É muito importante que cada planta tenha significado para quem a plantou, é essencial que quando alguém a coloque na terra tenha uma intenção mais afetiva", afirma ele.
Referências infantis
Por mais simples que as palavras de Peter possam parecer, elas sinalizam algo muito importante. Pelo menos para mim, jardim era só para ser bonito. Apesar de ter um exemplo tão rico na infância, não tinha me dado conta de como as pessoas da minha família se relacionavam tão amorosamente com as plantas. E nem tinha percebido que tinha aprendido com eles o cuidado que hoje reservo ao meu jardim.Os jardins da infância, a pracinha onde a gente brincava, o paisagismo do clube, os fins de semana no sítio ou o acampamento nas férias são peças-chaves na formação da nossa relação com a natureza. Se as crianças testemunham amor e carinho com o meio ambiente, como não vão aprender com isso?
Mas foi Peter Webb que me fez pensar como os jardins, especialmente, são referências importantíssimas na vida. Lembro-me de algumas de suas perguntas durante um workshop de ecopsicologia conduzido por ele e a psicóloga Bel César, em São Paulo. "O que os jardins da sua infância lhe ensinaram? Que elementos deles você gostaria de mudar, ou conservar, quando fosse fazer seu próprio jardim? Qual o tipo de jardim que você gostaria de oferecer para seus filhos?" Em outras palavras, ele queria nos despertar para nossa intenção ao plantar um jardim. Tivesse eu me perguntado isso antes, certamente não teria dado para minhas duas filhas um pouco inspirado jardim de prédio. Que lembranças elas poderão ter de um canteiro de lírios da paz cercado de capim paulistinha?
Euler Sandeville Jr., professor de história dos jardins no curso de pós-graduação de paisagismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, também recomenda jardins mais afetivos, intencionais, que tenham significado para a pessoa. "É uma bela maneira de integrar sentimento com a natureza. Um jardim cuidado com carinho é um lugar íntimo, um diário escrito na terra", diz o professor paisagista. E, se for escrever um diário com flores e arbustos, não se esqueça de comemorar datas significativas para você colocando uma plantinha na terra.

As rosas conversam
Peter, como dona Rosa, simplesmente adora misturar várias qualidades de plantas no mesmo lugar. Especialmente as que se "dão bem". E planta também se dá bem com umas e não se dá com as outras? Sim, diz ele, que coleciona um monte de exemplos - as que gostam de sombra, as que vieram do mesmo habitat etc. "Como as pessoas, as plantas se sentem bem na companhia de certas plantas. Na verdade, elas vêm de ambientes naturais onde existe multiplicidade e diversidade. Comunicam-se entre si por meio do perfume, atraem diferentes espécies de insetos e pássaros, formam uma comunidade complexa, um ecossistema", diz o ambientalista.É como se um jardim fosse composto por diversos extratos: o das flores e folhagens, o dos insetos, o dos pássaros, o dos perfumes. Pensando assim, certamente você começa a perceber que pode querer um jardim de cheiros doces, como o do jasmim, ou um outro para atrair beija-flores ou joaninhas e tatus-bolas. Observando esses extratos, sua intencionalidade começa a se enriquecer.
Para Peter, as pessoas geralmente escolhem plantas que se parecem com elas, que espelham seu interior. As mais calmas se darão bem com plantas mais estáveis, que não mudam quase nunca de forma, ou as de folhagem escura com flores brancas. Segundo a teoria dos cinco elementos da medicina chinesa, elas são mais lunares e femininas (e cheias de energia yin, que é justamente mais suave, tranqüila e delicada). Gente mais agitada, diz Peter Webb, irá se apaixonar por flores mais solares e coloridas, ou seja, repletas de energia yang (mais masculina, segundo a sabedoria chinesa). Ou também pode ocorrer um mecanismo psicológico de compensação - jardins ordenados rigidamente talvez ajudem a equilibrar um interior instável e caótico.
De qualquer maneira, simbolizarão sempre o desejo de controle sobre a natureza. Segundo o historiador americano Keith Thomas em O Homem e o Mundo Natural, os jardins simbolizam também um desejo de domar e ordenar a natureza, que sempre foi ameaçadora para o homem primitivo. Isto é, só começamos a gostar do verde quando ele deixa de simbolizar uma ameaça direta à nossa sobrevivência.
Aprendizado contínuo
Com as plantas, Peter Webb diz que aprendemos a ser pacientes e a apreciar o ciclo do tempo. Acompanhando esses ciclos, aprendemos a amar as plantas incondicionalmente, mesmo quando não estão em floração, mesmo quando não produzem. Uma bela lição numa sociedade orientada para a produção e o consumo. Enfim, o aprendizado é múltiplo, diz Peter. Basta conviver com a natureza de forma dedicada, prestando atenção.Com tantos exemplos, resolvi dar uma mudança radical no meu jardim. Primeiro vou comprar duas ou três roseiras. Deixarei em paz as marias-sem-vergonha que teimam em esconder as pedras da floreira. Reservarei um canteiro só para o boldo e a malva se espalharem à vontade. Trarei amigas de outras espécies para minhas violetas. E, juro, de agora em diante nunca mais vou tentar esconder das visitas os meus vasinhos de plástico.
Jardins do Éden
O Paraíso Terrestre
O primeiro jardim foi o do Paraíso, de onde fomos expulsos. Ele nasceu como prova do amor de Deus por Adão e Eva, e hoje, ao fazer um jardim, muitos de nós ainda sonham em recriar um pequeno pedaço dele.O Suspenso da Babilônia
Uma das sete maravilhas do mundo antigo, era uma montanha artificial erguida em patamares cheios de árvores frutíferas e flores perfumadas, no meio do deserto da Mesopotâmia (atual Iraque). Foi presente do rei Nabucodonosor, cerca de 600 a.C., a sua esposa Amytis, saudosa das serras verdejantes de sua terra natal.
Os Zen Japoneses
Nasceram como metáforas de outra realidade. Recriam simbolicamente a geografia da Terra, com a areia representando o mar, e as pedras, ilhas. São paisagens secas, áridas, feitas exatamente para descansar a mente - e não para excitar os sentidos. O de Ryoan-Ji, no Japão, é o mais famoso deles.
Os do Castelo de Villandry 
Esses, na França, fazem rir. Seguem aqueles recortes sinuosos e elaborados do jardim do Palácio de Versalhes, só que com couves, repolhos, abóboras, alfaces, pimentões e tomates.
Os de Generalife
Encharcam a alma de poesia, com suas tamareiras banhadas pela luz avermelhada do crepúsculo, ao lado do Palácio de Alhambra, na Andaluzia, no sul da Espanha.

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