quarta-feira, 26 de maio de 2010

Flores em você


O deserto e o seu contrário não estão só na paisagem

“Venha morar junto a um oásis”, convida o folheto de propaganda, ilustrado com o desenho de um prédio residencial de uns 20 andares diante da foto de algumas árvores frondosas e floridas.Aos poucos, reconheço as quaresmeiras, jacarandás e palmeiras em torno de uma majestosa sibipiruna. Salvo algumas imprecisões do desenho, são as mesmas que estão nas calçadas e quintais da casa onde moro e das casas vizinhas. É um tanto estranho ver sua rua ser reconhecida, oferecida e vendida como um oásis. Há uma sensação de perda que, felizmente, desaparece quando penso que seria uma bobagem acreditar que a rua fosse “minha”. Seria apenas uma ilusão neste mundo impermanente e nesta cidade em constante mutação. A torre desenhada no papel foi erguida do outro lado da rua, diante do portão por onde entro e saio todos os dias, ocupando os terrenos de sete casas construídas desde os anos 60. Sobre o mesmo chão,moram agora três vezes mais famílias. Depois da surpresa inicial, do desconforto durante as obras e do necessário desapego, estamos felizes por compartilhar o oásis. Convivemos muito bem com o edifício vizinho, para onde, aliás, mudaram-se alguns amigos. Do terreno onde ele foi construído, mudaram- se outros, como Dirce e Natanael, que nos deixaram suas roseiras, agora replantadas em nosso jardim caipira.
Algumas das árvores mostradas no folheto ainda existem graças aos cuidados pessoais e à inspiração de um artista que durante décadas providenciava para que os passarinhos encontrassem nelas seu suprimento diário de frutas, cortadas na metade e presas aos galhos. Aldemir Martins costumava desenhar esses pássaros, ainda que não tão freqüentemente quanto os gatos. A sibipiruna que faz sombra no meu quintal fica junto ao ateliê onde ele trabalhou diariamente durante mais de 30 anos. Aldemir se foi. Ou, melhor, não se foi, ficou no que fez e no que inspirou. Está aí, nos pássaros, pintados ou reais. Aldemir era capaz de manter um oásis em torno de si próprio, estivesse onde estivesse. Talvez esteja aí uma virtude essencial nesta caótica vida urbana, a capacidade de transformar em melhor lugar do mundo qualquer lugar onde se esteja, apenas com sua presença, seja onde for. Isso vale para o que é denso, como plantas, paredes e tetos  e mais ainda para o que é sutil, como a atitude e a convivência que influencia, nutre e constrói. É algo que se projeta internamente e que repercute no entorno.
“Deve ter alamedas verdes a cidade dos meus amores”, canta Chico na voz de bichos e crianças em “A Cidade Ideal”. Para encontrar um oásis nesta cidade tantas vezes cruel, há que enxergá-la com olhos de quem ama. Quem busca um oásis será capaz de reconhecê-lo quando o encontrar. A pessoa que percebe o deserto, que decide não fazer parte dele e assim ser ela mesma uma oposição à aridez identificará o oásis naturalmente. Há que nutrir os oásis e preservá- los, seja dentro de nós mesmos, seja nas poucas árvores que ainda restam nas enormes cidades calçadas.


Caco de Paula é jornalista e mora em São Paulo, cidade que tem muito mais oásis do que pode parecer. homemdebem@abril.com.br

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